Autor : Mario Gutierrez Sobrinho
Um alarme de carro dispara.São 06:45 hs da manhã de uma 4ª f. de sol.Marião se
vira sob as caixas de papelão da Rua do Mercado. Sua boca amarga,sua cabeça
que dói e seu corpo dormente não lhe animam a se levantar. O alarido do alarme
queima suas orelhas,aumentando sua dor de cabeça e lhe tirando o pouco de
conforto que julgava ter encontrado sob o viaduto que atravessa o rio e suas
marginais no centro da cidade.Senta-se e olha ao seu redor...demora a identificar
o local em que se encontra e não tem a mínima idéia de como veio parar ali. A um
senhor que passa pergunta as horas e o dia da semana. São 06:50 de uma linda
4ªf.,lhe responde sorridente aquele senhor que lhe faz lembrar momentaneamente
de seu pai, que já se foi há alguns anos para uma outra vida. Meu Deus...divaga...
o que aconteceu ontem,como vim parar aqui e porque estou todo dolorido ?
Percebe pequenas manchas de sangue nas mangas e no bolso de sua camisa
social surrada, ao mesmo tempo que sente uma ardencia em sua coxa
esquerda,em baixo de um pequeno furo em sua calça.
Nossa...será que andei brigando ? Meu Pai...quando bebo só faço coisa ruim
e nem lembro de nada. Levanta, espreguiçando-se lentamente,
e respirando profundamente.Sai andando em direção ao centro da cidade,
mancando lentamente,com uma dor intensa em todo o corpo e um cansaço
inexplicável.Ao passar em frente a uma vitrina mira seu reflexo.Sua negra
cabeleira,está desgrenhada. Seu olho esquerdo está meio roxo e só então
percebe a dor intensa no mesmo e as manchas de sangue em volta das narinas e
no canto esquerdo do lábio..Onde foi que eu arrumei tudo isto? Onde eu estive?
O que aconteceu? Mas além de não ter as respostas, sente sua dor de cabeça
aumentar. De repente,uma buzina estridente,um palavrão e um grande susto.
Quase foi atropelado ao atravessar a Av.Central perdido em seus pensamentos.
Sente muita sêde e um pouco de fome ao aproximar-se da Panificadora N.Sra.
do Perpétuo Socorro, onde ,como se lembra bem, já amanheceu diversas vezes,
desfrutando de seu famoso buffet de café da manhã após seus frequentes pórres..
Vai entrando automáticamente,recolhe uma comanda que lhe entrega uma
sorridente e jovem funcionária.Instintivamente enfia a mão num dos bolsos de sua
calça. Puxa sua carteira , onde confere seus documentos e algum dinheiro
trocado, que lhe garantirá um bom café da manhã.
Mas ao checar o outro bolso se surpreende com um envelope ,
de grosso conteúdo. Desconfiado vai até ao WC masculino, trancando a
porta. Abre o envelope e se espanta com o seu conteúdo... 50 notas de ...
US$ 100,00 ... Uau.. de onde veio tudo isto ?... Senhor me ajude a lembrar...será
que eu roubei de alguém ? ...não, não é possível...não é da minha índole,sou de
aprontar, mas nem tanto. Num flash,lembra rápidamente de estar bebendo num
pequeno bar da zona norte...lembra de beber muito...mas não lembra porque.
Aliás, nos últimos tempos não precisava de mais motivos para embriagar-se.
Depois que sua EX lhe abandonou, deixando o apto.vazio, ele se tornara um tipo
de alcoolatra, social, como ele mesmo dizia.
Mas e esse dinheiro todo ? Sai do banheiro pondo o envelope de volta no bolso
e vai ao balcão.Pede uma garrafa de água que começa a beber no gargalo,
tamanha a sêde que o assola.
Pede um mixto quente e um iogurte batido com açucar, sua receita para combater
os efeitos da ressaca...lactose corta o alcool do sangue...dizia a todos como
um cientista prestes a receber o premio nobel da bebedeira.
Enquanto o presunto e a mussarela chiam na chapa através das mãos hábeis do
balconista, Marião senta-se à uma mesa num canto, puxando pela memória.
Nesse momento o pequeno jornaleiro adentra á padaria com a manchete do dia...
“Herói Anônimo salva a vida da pequena Amanda”, filha de empresário milionário,
dos meios de comunicação, que estava nas mãos de sequestradores. ...
Meu Protetor, que mundo é este, em que não se respeita mais nem a vida de uma
Criança ? Serve-se de um pedaço do mixto ao mesmo tempo que toma um gole
do iogurte. Sua atenção se volta para o envelope misterioso.
Lembra de repente de estar numa rua escura e ouvir um choro vindo de uma van
estacionada num beco. È verdade ,agora estou lembrando...
haviam alguns homens mal encarados em volta da van, que com as portas
abertas,deixava aparecer o que seria alguem de pequena estatura e de cabelos
claros que chorava dentro da mesma.Mas não se lembra de mais nada.
Bom, mas o que isso tem haver com todos estes dólares ?
Marião continua mastigando seu mixto tentando matar aquilo que o
estáva matando...a Fome. Dá uma longa beiçada no copo do iogurte.
A TV acaba de ser ligada e o jornal da manhã fala sobre o pagamento fracassado
do resgate da pequena Amanda e de como ela teria sido salva da morte,por um
homem desconhecido que apareceu do meio das trevas,trocando socos com os
seqüestradores,desarmando-os e abatendo-os com suas próprias armas.
Em seguida o reporter entrevista o pai da menina ...
-pois é estávamos no local combinado,com os dólares,pedidos , quando reconheci
um dos sequestradores, um ex-funcionário de minha confiança, que estava se
vingando de uma demissão injusta, conforme me declarou ao ser identificado.
E o pior, continuava o pai, é que naquele momento ele desistia de receber o
resgate e prometia matar a linda Amanda. Desesperadamente eu lhe implorava
pela vida de minha filha quando ele se virou para a mesma, sacando sua arma.
Gritei de horror,e já perdia as esperanças, quando alguém,vindo do nada,arrancou
a arma das mãos do algoz, socando-os,se virando e pulando, atirou em todos tão
rápido e fugaz quanto um raio em tempestade pesada. Um dos mal feitores,antes
de morrer,ainda conseguiu atirar contra ele, acertando-o numa das pernas.
- Marião, terminando o seu mixto e dando mais um gole em seu copo,
ouvia estarrecido as declarações,-...meus Orixás, ainda bem que não era comigo,
senão eu estava correndo até agora,sorria, mas estava mais preocupado em
se lembrar do que havia lhe acontecido na noite anterior e de como aqueles
dólares haviam ido parar no seu bolso.
Mas a tv continua ,sensacionalista, com seu relato tenebroso :
A menina Amanda no colo do pai diz que foi um anjo de
cabelos negros que a salvou, matando os bandidos e retirando-a da van em seus
braços. O pai alega que recebeu a filha dos braços do justiçeiro do bem...
quiz saber quem era ele,continua o pai, mas sem resposta mal tive tempo de
agradecer com um abraço, ...quando,... (o pai não sabe dizer porque),
coloquei um dos envelopes do resgate no bolso da calça daquele que me restituira
a vida da minha filha tão querida. Nada mais Justo.
Perguntado , o pai não soube precisar a quantia dos dolares no envelope.
A pequena Amanda diz que quando foi tirada da van pelo seu Salvador e
carregada até o seu pai, tirou sua pulseirinha de ouro e a colocou no bolso da
camisa dele : o seu Herói,o seu Anjo da Guarda.
Que Deus o Abençoe e Proteja, -era o seu desejo.
-...mais alguma coisa ? ...pergunta a garçonete. Não obrigado responde Marião,
enquanto pega a comanda e se dirige ao caixa. Tanta desgraça no mundo e eu
preocupado com o que me aconteceu após mais uma bebedeira.
Para de beber Marião...dizia para sí mesmo. Bom deixa pra lá. Se não aparecer o
dono do dinheiro e se eu não me lembrar de nada, vou usá-lo para mim.
Ou melhor... vou mandar metade para a EX...quem sabe ela me perdoa e me liga,
se dizia, gargalhando muito... já respirando melhor com a fome e a sede saciados.
Sai e se dirige ao ponto de onibus mais próximo.Antes de chegar lá, uma pequena
moradora de rua,mulatinha de olhos negros se aproxima...Oi Tio...dá um trocado?
E eu lá sou seu tio menina?... diz sorrindo...já não sentia tantas dores, a não ser a
da coxa esquerda, em baixo do furo da calça...(nossa parece até que eu levei um
tiro)...Deus me Livre, balbucia,enquanto leva a mão ao bolso da camisa em busca
de uma moeda,mas ,em vez de moeda, uma pequena pulseira dourada...
Mais essa...resmunga...e de onde veio isto ?...que mistério...que bebedeira...
O tio, dá pra mim...é do meu tamanho... Marião olha para a garotinha e
encantado com o seu meigo olhar lhe entrega o pequeno mimo,sem prestar
muita atenção...Toma,diz, - é presente de aniversário,de natal e de tudo...certo...
não me pede mais nada...diz as gargalhadas.
A menina toda feliz volta-se colocando a sua jóia. Marião continua a sua
caminhada,mancando lentamente mas com sua alma lavada...afinal sua ressaca
já estava passando, ...é a Lactose,dizia para si mesmo sorrindo muito...
Ei Tio...qrita a menina já meio afastada, -qui legal...tem o meu nome...
-...é mesmo...??? responde Marião...e qual é o seu nome...???
É AMANDA...Tio... Tchau ... Obrigada...
Tchau Amanda...que Deus Te Abençoe...